CACHORRO MORTO

girando o pedal com força

esticando a musculatura da bunda

conversando com o ciático

a cada pedalada

curtindo o sol no rosto

essa ida de uma hora

esses 15 km até o trabalho

um suor terapêutico

mudo a marcha, 

pesada, leve

nem sei bem.

vou aprendendo e pedalando

é melhor do que ônibus

bicicleta na pandemia me salva

apenas eu e o pedal

eu e a força

eu e o suor

eu e a respiração

ofegante sigo

mais um dia

desvio dos buracos

máscara também me sufoca

uso sempre

fica encharcada e jogo fora

meu lixo de sobrevivência

meu lixo obrigatório

merda

é como amar cerveja e odiar a lata

amar o vinho e odiar a garrafa

faço artes lindas com as garrafas

infelizmente, bebo mais do que

produzo arte

continuo no meu descarte

pedalo e penso

penso muito

observo muitas máscaras

caídas e deixadas

meu percurso é cheio delas

algo lá na frente

minha nossa! é um cachorro

um cachorro morto

marrom

será que está mesmo morto

passarei por ele

 ainda está longe

se aproxima a cada pedalada

será que tem sangue lá?

tripas pra fora?

Não posso ver!

 Chegando perto!

E se estiver vivo ainda...

filha da puta de quem atropelou

desgraçado

tomara que fique sem bagos

se for homem

mulher pararia

mulher nem atropelaria

eu as admiro

eu as enalteço

que merda tá tão perto 

vou vomitar

 não posso olhar

 não suporto ver bicho morrendo

tão perto 

e esse vento contra

força perninha

força pedal

mais um giro

mais um 

mais um

chegando tão perto

meu coração vai sair pela boca

cheguei

minha nossa!

Não acredito nisso!

É um tapete!

Não é um cachorro!

Nem é marrom, tá sujo de barro, lama, sei lá...

E agora sigo rindo sozinha!

Os carros que passam por mim 

e seus passageiros que me olham de um jeito estranho

nem imaginam

estou rindo e falando alto

não é um cachorro

não é um cachorro

balanço a cabeça

rebolando na bicicleta

risadas altas

tiradas do lugar do choro

tiradas do lugar do vomito

 não é um cachorro é um tapete sujo

sigo até o trevo, quase chegando e rindo

felicidade boba

felicidade boa

vai pedal rindo

para na faixa

desço da bicicleta e atravesso como pedestre

quem me deixa  passar é um santo

tudo é lindo

 sol no rosto

 tudo é belo

 não era um cachorro morto