Apenas fale

parte I


Tudo que a cercava tinha peso de alguma história vivida.
Ela admirava pequenas cicatrizes nos móveis, cicatrizes nas paredes e no chão.
Sentia sempre a sensação de que o passado estava ali, impresso e negava-se a cobrir com tinta,
algo que a fazia sentir, qualquer que fosse a história do passado 
e suas vozes gritantes nas marcas que via.
Na verdade, os pensamentos dela criavam uma imensidão de possibilidades e ela amava ser assim.
Parava para ouvir uma imagem falar e sentia.
Ela não admitia modernidades como se tivesse nascido no século XVIII.
Preferia mobília com rigidez medieval e o encanto da nogueira polida com azeite e cera, 
que exibia seus provocantes torneados.
A luz do amanhecer que invadia o quarto, revelando seus contrastes a surpreendiam sempre.
E numa manhã...
Abriu os olhos num demorado despertar e não moveu a cabeça.
Sem ninguém ao seu lado, acompanhou com os olhos ainda preguiçosos, o raio de sol que entrou por entre as cortinas que balançavam suavemente.
Um balé de luz, cor, ar e movimento.
Vida!
O assoalho gritava seu avermelhado que um dia, como árvore, respirou.
E tudo era perfeito!
Ela não ousou tirar nada do lugar, quando comprou a velha casa.
Havia um laço no coração ardente, que amou e quis proteger cada centímetro.
A atmosfera de romance que ela insistia em viver, a envolvia com todo o requinte arredondado e suavizado nas curvas dos móveis.
Apenas em alguns momentos fora de seu pensamento tinha por vencida a travada luta contra modernidade e seu brilho inox.
Sua camisola vitoriana de mangas fofas, fitas e rendas, retrato perfeito, antigo, ainda não tirado, esperando pelos olhos certos atrás do clic.
Olhos que olhassem profundamente os seus.
Esperava por lábios que beijassem sua mão e uma alma que se conectasse à sua, com a simplicidade de um rio e a calma das asas da borboleta.
Esperava um dia encontrar com sua alma gêmea, um acontecimento que poderia ser singelo no início, mas como todo romance a envolveria reluzente, incomparável como aurora boreal.
Ela esperava e chegava a crer que havia um pedaço seu em outro continente.
Pensamento absurdo que a alimentava e insatisfeita com o real, continuava sonhando.
As grandes e pesadas janelas se abriram naquela manhã e Chloe, tinha que empurrar com força as pesadas folhas da veneziana.
Aquela brisa suave refrescava o quarto e avançava por toda casa e pelo jardim, com tanto pólem no ar, que ela se perguntava quem tinha soprado a Terra no amanhecer.
Seu sorriso, que pendia um pouco, deixava livre o olhar, que circulava sem pressa pelo jardim.
O jardim mais parecia um matagal, com uma flor ou outra e o olhar descansado encontrava o alto do morro e sua exuberante vida arbórea.
Sua cabeça descansava na vista da janela, como fazia costumeiramente em seus ensaios fotográficos.
Mas, em seu universo particular, permanecia com seu olhar terno, aquele que sempre estava em seu rosto, no amanhecer, nos minutos que ela mais amava.
Tinha em si todas as expressões e podia trazê-las a qualquer momento.
Como uma sequência de almas que ela lembrava de revelar enquanto todos os flashes disparavam.
Admirada pelo dom de transformar-se espontaneamente em tantas pessoas,  manifestava expressões intrigantes e cativantes, sedutoras e enigmáticas.
Havia sempre uma surpresa em seu rosto e seus olhares realçavam o mistério de sua alma.
Mais um dia de muitas fotos chegava ao fim.
Sozinha ela se olhou.
Todas as roupas modernas voltaram para os cabides, que, repletos de personagens criados, eram empurradas pelos corredores. 
Ela se olhou no espelho iluminado.
O fotógrafo a surpreendeu com uma última foto e disse:
-Essa é só pra você Chloe! Você deveria estar muito feliz! Sabia?
Não são todas as modelos de cinquenta anos e cabelos brancos, que obtém tanto sucesso no mundo publicitário.
Mas ela não gostou do que sentia e por alguma razão, lembrou de um recorte de memória, onde aos dez anos de idade, chorou compulsivamente, encostada na porta de um guarda-roupa.
Então, ela tirou a maquiagem artística, que como uma máscara, era como uma blindagem perfeita.
Segurou os primeiros impulsos de um longo choro.
Existem certos dias prontos para a verdade, sobre si mesmo, sobre os pares, sobre os círculos, amizades, sobre a vida.
Tantas vozes e risos, tantas comemorações e todo o dinheiro, ou falta dele, que faz as pessoas olharem de forma diferente umas às outras.
Para ela tudo isso era uma maquiagem artística, como uma blindagem perfeita, absolutamente intencional e necessária, ela sabia disso, mas não gostava.
Então ela dirigiu até a sua casa de grossas paredes, janelas pesadas e antigas.
Sua casa que havia demorado tanto a encontrar.
Enquanto dirigia lembrou-se de como enlouquecia os corretores que não entendiam absolutamente nada, quanto ela dizia: Eu não sinto que essa casa seja minha!
Até que num fim de tarde quase noitinha, foi levada até seu lar.
Quando abriu o velho portão de ferro que fez um fino barulhinho e ela caminhou até a porta pelos tijolos gastos, entrou e não havia luz para acender.
Já havia algo especial se revelando desde o sibilar do portão.
A penumbra alaranjada que invadiu a casa lentamente e sem força alguma, 
fez com que os móveis antigos aparecerem quase dormentes em suas sombras e fez acelerar o coração.
Então ela disse: Eu estou em casa!
As estradas até a casa não eram boas e a chuva forte de alguma forma dava impulso às lágrimas, um choro intenso e esperado que havia mostrado seu início à frente do espelho.
Entrou em casa com aquele insistente sentimento da porta do guarda-roupa.
Tomou um banho quente, e na única admissão moderna da casa, o banheiro, teve seu choro finalizado em meio ao vapor e a espuma.
Adormeceu depois de quatro taças de bordô.
Ao despertar vagarosamente na manhã seguinte, pensou em todas as angústias da infância e o chamado das árvores que ela insistia em ignorar, tornou-se ensurdecedor.
Chloe saiu descalça e ainda com sua camisola, caminhou até o início da mata fechada.
Muitas das árvores ainda pareciam dormir, sem suas folhas.
A cada passo pensava em tudo que sentia, passos pulsantes como as batidas do coração.
As árvores adormecidas cujos galhos estreitavam-se e ao vê-los nus, sempre tinha a impressão de que eletrizantes neurônios gigantes a observavam com algo a transmitir.
Fomentava sua revolta ao viver no mundo dito real onde árvores não tem voz e tinha a si mesma como louca, ao acreditar nos sussurros em sua mente.
Naquela hora se sentia um pouco sombria e não podia evitar tocar em seu próprio rosto.
Suas mãos quentes postas na face, relaxavam os olhos e tranquilizando-se, dava acalento de se amar brevemente.
Sentia seu hálito e desejava outro gosto em sua boca.
O vinho lhe trazia desejos ocultos, esquecidos no tempo, roubado pelas crenças e a indignação sentava-se ao lado sempre a perguntar:
O que poderia trazer de volta o frescor de amar alguém sem culpa?
A saudade de não ter limites fazia seus ossos aquecerem e seu sangue pulsava acelerado como o coração que ardia por entregar-se a ferventes beijos.
Quando subestimada melancolia deixou de dar-lhe tudo que tinha para alimentar, trocas de sorriso, cores e sons, percebeu que nisso estava toda a riqueza de ser quem era e ela não tentava evitar, amava a melancolia e todas as trocas.
Continua...

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