OS SAPATOS DA RAINHA


A doce rainha despertou desejando saborear o seu chá preferido. Pêssego, um pouco cítrico e adocicado, mas suave e delicioso.
Sozinha em sua reinação preparou o seu chá elegantemente, como se estivesse sendo observada e avaliada pelos refinados nobres de qualquer pomposa realeza.
Ao pentear e prender seus cabelos com grampos, fitou profundamente seus olhos no espelho por alguns segundos e desejando bons dias à sua preciosa súdita refletida, falou em voz alta:" Reino sobre mim!"
O barulho da chuva forte deu o devido descanso à rainha que, disposta, planejava uma boa caminhada.
O fim da chuva deixou seu frescor e a rainha procurou seus sapatos para chuva.
Ela não entendeu o fato de seus sapatos de chuva não estarem no armário, pois fazia alguns meses que não havia chovido tão intensamente como na noite anterior.
A intensa chuva com os estrondos da trovoada deixara tudo mais verde com cheiro de terra molhada, floresta molhada e claro uma boa porção de lama nos meatos das redondezas arvoradas.
Ela não via seu par de sapatos para chuva a algum tempo.
Enfim, calçou um dos pares não muito apropriados e saiu para visitar a mata depois da chuva.
Mas intrigada com o sumiço dos seus sapatos de chuva favoritos que tinham sido feitos à mão pelo sapateiro Tom, ela sentia perder também as conversas, risadas e a terna amizade daquele artista.
O sapato era feito de um couro macio e bem esticado, na sola não haviam pregos e os furinhos que uniam as partes do sapato, eram preenchidos com pequeninas e finas estacas de madeira feitas à mão pelo próprio sapateiro Tom.
Eram sapatos perfeitos.
Quanto mais fossem usados melhor ficariam e perdê-los com todas as memórias de uma bela amizade, traziam uma certa tristeza à doce rainha.
-Sinto falta dos sapatos feitos pelo sapateiro Tom! Exclamava ela para si mesma.
Caminhando entre as árvores, a rainha sentia-se rica.
Respirava fundo com todos os sentimentos, satisfações e sorria com o despejar das muitas gotas que as folhas deixavam cair.
Os pingos gelados provocavam as suas risadinhas e pulinhos nas grossas raízes deixavam o passeio menineiro e a alegria crescia tão rápido quanto os cogumelos nos dias úmidos.
O encanto da rainha era falar com os bichos da floresta e em toda fauna não havia a preocupação de esconder-se dela por causa de seu amor e serenidade.
Então ela pensou que alguns desses afoitos amigos poderiam, ainda que sem maldade alguma, terem se apropriado indevidamente de seu souvenir pisante.
Enquanto seu passeio tornava-se molhado e com muita lama nos pés, ela olhava para todo animal e para todo caminhar.
A rainha pensava que se alguém usasse seus sapatos reais, aprenderia a caminhar como rainha.
Encontrou o Servo Campeiro atento entre as árvores e observando sua refinada postura sobre cascos tão pequenos, perguntou:
-Bom dia Senhor Servo, o senhor tem um caminhar elegante e altivo; por acaso o senhor encontrou meus sapatos?
-Oh não senhora rainha, é este o meu caminhar, eu aprendi assim que fiquei de pé após o meu nascimento.
A rainha consentiu com a cabeça e um leve fechar de olhos, despedindo-se do servo.
Adiante observou um bicho-preguiça imóvel, abraçado ao tronco elevado de uma majestosa árvore.
A rainha com sua fala amorosa, aceitando o brio do belo animal, iniciou a conversa:
-Bom dia Dona preguiça! A senhora fica horas em sua pose soberana como as rainhas em seus tronos. Muitas vezes movendo-se com sutileza e um olhar atento.
Sua postura é de quem reina. Por acaso a senhora encontrou meus sapatos?
-Oh não senhora rainha, meus pés são iguais as minhas mãos, eu não preciso de sapatos, preciso das minhas quatro mãos.
A rainha consentiu com a cabeça e um leve fechar de olhos, despedindo-se do bicho-preguiça.
Atravessando uma pequena clareira a rainha rodopiou para sentir um calorzinho do sol meio tímido, que apareceu um pouquinho entre uma nuvem e outra.
Entrando novamente na brenha sentiu um silêncio provocativo e ao elevar seus olhos viu uma onça esparramada num galho com sua pele de manto real.
A rainha não precisou pensar muito para convencer-se de que realmente se tratava de um ser que reinava por ali.
E não deixando-se intimidar com os olhos astutos da onça, iniciou a conversa.
-Olá¡ Dona onça, eu sou a rainha!
-Eu sei quem é você, eu a observo a muito tempo e costumo ver sem ser vista.
Respondeu a onça entre uma lambida e outra.
-Então vou direto ao assunto, a senhora encontrou meus sapatos?
-Não, eu uso minhas garras todos os dias, eu preciso delas e seus sapatos de couro não me serviriam.
-Como sabe que meus sapatos são de couro?
-Eu os vi essa manhã bem cedo e na verdade quase os devorei!
-Como? Onde? Porquê?
-Eles estavam nos pés do Teiú e ele os deixou antes de entrar no buraco, perto da árvore quebrada sobre o rio.
Na verdade esses sapatos me impediram o desjejum.
Mas a senhora pode encontrá-los por lá, já que o Senhor Teiú não sairá da toca tão cedo.
A rainha consentiu com um leve inclinar de cabeça, mas afastou-se da onça cautelosamente, sem dar-lhe as costas e sem fechar os olhos, percebendo que o felino ainda planejava substituir o lagarto que não conseguiu abocanhar.
Ao chegar no rio, atravessou pela árvore quebrada chegando até a toca do suspeito.
-Senhor Teiú? O senhor encontrou meus sapatos? Meus sapatos para dias de chuva?
Não obtendo resposta a rainha tentava tirar um pouco da grossa e escura lama que formava uma segunda sola nos sapatos de veludo ensopados.
Sentou-se numa pedra a beira do rio e ali cantarolava e tentava inutilmente limpar os sapatos e também as meias e com um risinho conformado disse em voz alta:
-Ufa! Nem sei mais a cor de minhas meias, nem desses sapatos!
-Azuis! Esses são os azuis!
-Senhor Teiú? Olá! Como está o senhor? A Dona Onça me disse que o viu com meus sapatos?
E a rainha percebeu que o recatado lagarto estava um pouco acanhado
e rapidamente ele entrou em sua toca.
E lá estava a paciente rainha, atenta virava os ouvidos para tentar decifrar uns sons esquisitos vindos do buraco.
Mas só ouvia resmungos abafados:
-Onde estão? Não, não é isso, isso não é, isso, isso também não, achei!
E colocando a cabeça para fora da toca, tornou a entrar e em seguida jogou para fora os sapatos da rainha.
-Muito obrigada Senhor Teiú!
-Não me serviram, esses também não me serviram!
A rainha achou estranho que um lagarto estivesse a procura de sapatos, mas o resmungo era tanto no interior do buraco que ela preferiu deixar o réptil bichanar sozinho.
Mas enfim.
Cantarolava alegremente a rainha ao retornar do passeio balançando seu par de sapatos, que já não eram necessários pois o sol já brilhava deixando o dia bem mais colorido.
Mas a nobre rainha ainda não parava de pensar nos pés do Teiú que precisavam de sapatos.
Mas essa é uma outra história.




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