A memória, o crivo e o pão


E no Alto Ribeirão, passei alguns dias cozinhando para minha mãe.
Depois de sovar muito bem a massa do pão e os pulsos ficarem doendo,
lavei as mãos na torneira de água bem quente porque a massa era grudenta
e terminei todas as tarefas que havia proposto para fazer.
Depois de tantas panelas, tantos aromas, tantos sabores...
Enfim, respirei bem fundo, lavei o rosto
e me olhei no espelho do banheiro arrumando os cabelos.
Minhas linhas de expressão não agradavam muito, mas sorri,
dando afeto a mim mesma, compreendendo o quanto precisava do meu próprio sorriso.
As linhas apareceram no decorrer dos anos
e percebi o quão desatenta fui comigo.
Agora linha após linha, escrevo meus pensamentos, sentimentos...
Alguma coisa inventada, outras recolho ao redor e sirvo.
Sirvo. Como quem prepara um bom prato,
com temperos diversos de agradecimento
e muita apreciação no tempo que tudo leva para ficar pronto.
Me sento e escrevo.
Tenho que parar de vez em quando para ouvir as histórias da mãe.
Ela começou falando da menina cega que alcançou o milagre da Santa,
enquanto contava que foi na sala dos milagres e passavam um filme,
lembrava que foi emocionante e a lembrança a fez chorar por instantes.
Depois da menina lembrou do jovem cego
que vendia fichas telefônicas na Rua Felipe Schmidt.
Ela dizia que era um jovem lindo e perfeito,
simplesmente não conseguia compreender!
-Ele era perfeito! Seus olhos pareciam perfeitos,
ele me olhava mas não me via! Ela dizia.
Então perguntei pra mãe:
- Como a senhora sabia que ele era cego?
- Eu parei pra perguntar! Ele me despertou a curiosidade
sendo um jovem poderia estar fazendo outras coisas melhores.
Tornei a perguntar:
- A senhora comprou fichas dele?
- Não! Oh coitado! É mesmo, eu devia ter comprado!
Continuamos passeando pela memória dela e prosseguiu com mais uma:
- Se vê de tudo nessa cidade...
Até aquele que pula no arco de facas!
Parei de escrever para estar bem atenta.
Rindo e gesticulando de várias formas,
ao contar seus episódios, formava a minha memória afetiva.
- Ele fala, fala e vai juntando gente! O povo faz uma roda
e quando ele vê que tem bastante gente em volta, se joga no arco de faca!
Um se joga e o outro vende a pomada feita do peixe elétrico!
Continuamos com boas risadas pra gostar de viver
e perceber que não precisamos de muita coisa além do tempo, pra ser feliz por aqui.
Tenho mesmo uma fonte de muitas crônicas conversando com a mãe.
Ouço com atenção quando ela se lembra de tantas coisas e resolve me presentear
com seus ricos arquivos de memória, cheios de vida e emoção.
É como se um alimento construído com a experiência de uma vida inteira
estivesse sendo me servido em várias e generosas porções.
E eu que não participei de nada, simplesmente ouço e aprendo, mais e mais.
No final de tanta coisa falada,
a gente sempre pergunta como começou todo o assunto.
Seguindo aquele cordão de assuntos voltamos ao começo
e parece que ela sempre faz isso.
Como se precisasse ver a primeira página do livro pra fechar e guardar.
Como o crivo: Um pedaço de pano preso no bastidor.
Como a vida: um pedaço de tempo, preso na memória.
Ela vai puxando os fios do tecido e
nos espaços vazios que as linhas são cortadas,
faz o bordado que aprendeu com a Doralice aos nove anos de idade.
Como eu, depois que terminei o pão e percebi minhas linhas de expressão!
Um segundo que faz a mente percorrer uma história vivida e sentida.
Depois de terminar meu trabalho com a massa,
não há mais nada que eu possa fazer a não ser esperar.
O pão cresce, eu asso e todos comem.
Tem momentos na vida, que não se tem outra coisa a fazer senão aguardar o processo.
Então...
Quando ela volta a se concentrar no crivo,
puxando fio por fio, preparando lugar para trançar as linhas
e fazer seus desenhos no pano, eu contemplo aquele momento. 
E terminada a conversa, volto a escrever.
É assim...
Nada me assombra e me fascina mais do que a memória, o pão e o crivo.



Comentários

  1. Ameiiii mana ficou fantástico.
    É de se emicionar, me vi no seu lugar.
    Ela conta tantas histórias boas né.

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